18 de mar. de 2025

CLÓVIS BEVILÁQUA – Erudição e Modéstia



   
      - Pedro Luso de Carvalho


Francisco de Assis Barbosa, paulista de Guaratinguetá, graduado pela Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro em 1931, iniciou sua profissão de jornalista quando ainda era estudante de Direito. Foi redator de A Nação, tendo trabalhado também em A Noite, Diretrizes, Correio da Manhã, Diário Carioca, Última Hora, e, no período de 1946 a 1950, nas sucursais de O Estado de São Paulo e Folha de S. Paulo.

Sua atividade no campo do jornalismo foi além: foi o fundador da Associação Brasileira de Escritores, tendo sido consultor literário de algumas editoras, além de ter sido assessor editorial da Enciclopédia Britânica do Brasil. Recebeu, por seus trabalhos literários, os prêmios: Prêmio Silvio Romero, da Academia Brasileira de Letras pelo ensaio O Romance, o Conto e a Novela no Brasil, em 1951; o Prêmio Fábio Prado, da Sociedade Paulistana de Escritores pela obra A Vida de Lima Barreto, em 1952.

Foi mais longe: publicou novela, reportagens em colaboração com Joel Silveira, biografia (Retratos de Família), prefaciou edições, dentre elas: Obras de Lima Barreto, 17 volumes, em colaboração com Antonio Houaiss e M. Cavalcanti Proença. Da obra Retratos de Família, com prefácio de Josué Montello, transcrevo parte da biografia de Clóvis Beviláqua, o mais importante jurista brasileiro:

“Pobre e sem vaidade, nem ambições, Clóvis Beviláqua recusou todos os títulos, honrarias e situações: até mesmo à Academia deixou de pertencer, desde que foi recusada a inscrição da esposa no grêmio dos imortais. Na mocidade, quiseram fazê-lo presidente do Ceará. Não quis. Deputado, senador, também não quis. Hermes Fonseca ofereceu-lhe uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, convite reiterado por Washington Luis, vinte anos depois. Recusou as duas vezes. Em 1920, o comitê de juristas da Sociedade das Nações pediu-lhe que redigisse o projeto da organização da Corte Permanente de Justiça Internacional. Fez o projeto mas não foi discuti-lo. O presidente Hoover pediu a sua cooperação no conflito em os Estados Unidos e a Lituânia... mas é desnecessário enumerar todas as recusas de Clóvis. Seria um nunca acaba. Dariam para encher páginas inteiras deste livro.

Nunca foi à Europa. Nunca fez uma viagem ao estrangeiro. Clóvis Beviláqua  na sua modéstia, jamais possuiu um smoking, uma casaca. Ao que parece, só uma vez na vida deixou-se enfarpelar para comparecer a uma festa de estudantes, no Teatro Municipal, por ocasião do centenário de Teixeira de Freitas, em 1916. O episódio é interessante. Vale a pena ser recordado, pois marcou a reconciliação com Rui Barbosa, depois da azeda discussão em torno do projeto do Código Civil.

O presidente da Associação de Estudantes, Edmundo da Luz Pinto, fora à casa de Clóvis Beviláqua convidá-lo para fazer a conferência sobre Teixeira de Freitas (...) Fez a conferência. A festa dos estudantes, no Teatro Municipal, teve a presidência de Rui Barbosa, que proclamou no adversário da véspera o “maior jurista brasileiro de todos os tempos”, entre as aclamações dos jovens. No centro do palco, aturdido com tantos aplausos, Clóvis também batia palmas. Julgava que a homenagem era dirigida a Rui, e não a ele”.

Como se vê, a responsabilidade assumida por Clóvis Beviláqua para elaborar o Código Civil Brasileiro, que foi promulgado em 1916, e que foi considerado o maior monumento de codificação jurídica da América, constituiu-se apenas num episódio de sua vida; outros aspectos da biografia desse renomado jurista podem ser conhecidos com a leitura da obra Clóvis Beviláqua  de Lauro Romero, filho de seu dileto amigo, Sílvio Romero, também publicado pela Livraria José Olympio Editora. Essa biografia será sempre uma leitura recomendável.





EFERÊNCIAS:
BARBOSA, Francisco de Assis. Retratos de Família. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967.

ROMERO, Lauro. Clóvis Beviláqua. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956.




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13 de fev. de 2025

INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL


             


                   - por Pedro Luso de Carvalho

       
      Assegurar à mulher e ao homem a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, a segurança e à propriedade é dever do Estado, e uma vez violado um desses direitos, como por exemplo, ofensa à honra de uma pessoa, ao Poder Judiciário cabe decidir qual o valor a ser pago pelo ofensor, a título de reparação do dano (Constituição Federal, art. 5º, V e X, e Código Civil, art. 927). 

        Diz sobre o tema o jurista Araquém de Assis: “É imperioso na sociedade de massas inculcar respeito máximo à pessoa humana, frequentemente negligenciada, e a indenização do dano moral quando se verificar ilícito e dano desta natureza, constitui um instrumento valioso para alcançar tal objetivo. Indenização do Dano Moral, in RJ, p. 236”.

        Também Carlos Alberto Bittar manifesta-se sobre o tema: “São morais os danos a atributo valorativo (virtudes) da pessoa, como ente social, ou seja, integrada à sociedade; vale dizer, dos elementos que a individualizam como ser, como a honra, a reputação, as manifestações do intelecto. Responsabilidade Civil – Teoria e Prática, Forense Universitária, 1ª ed. RJ, 1989”. 

        O jurista Yussef Said Cahali ensina: “Dano moral, portanto, é a dor resultante da violação de um bem juridicamente tutelado, sem repercussão patrimonial. Seja dor física - dor-sensação, como a denomina Carpenter - nascida de uma lesão material; seja a dor moral - dor-sentimento, de causa imaterial". Dano e Indenização, São Paulo, RT, 1980.

        Não é demais dizer que a indenização fixada pelo juiz por ofensa à honra não deve ser interpretada como mera compensação pelo dano sofrido, já que esta é de valor inestimável, mas com a finalidade de impedir a reincidência do ato ilícito. Daí falar-se do caráter pedagógico dessa pena.

        Mas, não se pode esquecer, no entanto, que se a pena indenizatória for fixada pelo magistrado em valor inferior ao que a fortuna do ofensor representa, de um lado, em contrapartida com dano causado à imagem proeminente do ofendido, por outro lado, têm-se a certeza de que não foi feita justiça, na sua integridade, e, em consequência, não se poderá esperar que quem fira a imagem de outrem possa aprender alguma coisa com esse tipo de pena, prolatada na sentença. Essa oportunidade pedagógica o juiz não pode perder, pela responsabilidade que tem para com a sociedade.





                                                                   
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29 de nov. de 2024

RUI BARBOSA – Soberania de Papelão



Naturalmente, quanto maiores os interesses em jogo, mais azado o ensejo para o florescer dessa indústria criminosa, dessa indústria de lesa-nação. Nenhum, portanto, a esse respeito, se compara com o das mudanças de presidente da República, o da eleição das candidaturas presidenciais. É então que, entre os da comandita abarcadora desse poder irresistível no mecanismo das nossas instituições, meia dúzia de sujeitos, da pior cotação moral no país, dispõe da magistratura suprema, e a soberania nacional, depois de se deixar adereçar, por alguns dias, das suas insígnias de papelão constitucional, volve aos quatro anos de sono até à outra vez de a alfaiarem, para nova solenidade, com as joias da coroa de bricabraque.


(In Rui Barbosa e o Exército. Conferência às Classes Armadas. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1949, p.35.)



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9 de nov. de 2024

PIERO CALAMANDREI & Sua Crônica



      –  Pedro Luso de Carvalho

PIERO CALAMANDREI nasceu na cidade de Florença, Itália, em 1889 e faleceu em 1956. Foi professor nas Universidades de Florença, Messina, Modena e Siena. Foi um dos poucos professores que não integrou o Partido Nacional Fascista. Em 25 de julho de 1945 foi eleito Reitor da Universidade Florentina. Foi um expoente da moderna escola de direito processual civil, além de renomado advogado. Fundou com Chiovenda e Carnelutti a Revista de Direito Processual (Rivista di diritto processuale). Em 1945 fundou a revista político-literária Il Ponte. Eleito para a Assembleia Constituinte fez parte da comissão encarregada de redigir o projeto da Constituição Italiana (foi deputado de 1948 a 1953).
De sua obra destacam-se: La chiamata in garantia (1913) – La cassazione civile (1920) – Studi sul processo civile (1930 - 57) – Elogio dei giudici scritto da un avvocato (1935) – Inventario della casa di campagna (1941) – Stituzione di diritto processuale civile (1941 - 44) – Scritti e discorsi politici (postumo 1966). Elogio dei giudici scritto da un avvocato foi traduzido para o português por Ary dos Santos, com o título Eles, os juízes, visto por nós, os advogados, e publicado pela Editora Livraria Clássica Editora, Lisboa, Portugal. Dessa obra, escolhemos uma das crônicas que o compõem, em homenagem aos advogados que já têm prateados os seus cabelos, e que, mesmo com a larga experiência de tribuna, ao assomá-la ainda sentem a mesma emoção das suas primeiras defesas.
Segue a crônica de Calamandrei (In Calamandrei, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Tradução de Ary dos Santos. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 4ª ed., 1971, p. 178-179:

VI NO PALÁCIO DA JUSTIÇA, sob a porta de uma sala, um velho advogado que esperava, já de toga vestida, a sua vez de falar. Encostado com ar cansado à ombreira parecia estar em contemplação estática, as mãos cruzadas sobre o peito, em gesto de oração, alheio e penetrado de solidão no meio da turba barulhenta dos colegas. Observando-o, porém, mais de perto, vi que não estava a rezar, mas sim a medir, pelas pulsações e com o olhar fixo no relógio, os batimentos do coração.
Um colega indiscreto tirou-o daquele isolamento, perguntando-lhe com malícia se tinha febre, ao que o outro respondeu, como se tivesse acordado de um sonho: Dizem os médicos que os doentes do coração não devem discutir causas....Só nesse momento notei a palidez violácea da daquela cara e, nas fontes, debaixo de uma pele de cera, o trajeto marcado das pequenas artérias, nas quais o vulgo julga crer que esteja escrita a morte imediata. O oficial de diligências fez a chamada para o seu processo.
Entrou para a sala de audiências e quando daí a pouco eu lá entrei também, vi com admiração que o velho advogado, alquebrado e doente, se transformara, da bancada da defesa, num robusto orador cheio de vida, esbraseado pela discussão e agitando aquele pulso no qual, instantes antes, expiava o passo da morte em marcha. Agora, que estava em jogo a vitória do seu cliente, já não lhe vinha a ideia moderar o gesto mais brusco ou apóstrofe mais violenta, que por si só podia bastar para, na frágil consistência daquela pequena artéria, abrir o rasgão fatal.



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25 de set. de 2024

CLÓVIS BEVILÁQUA – Entrevista a João do Rio




- Pedro Luso de Carvalho


CLÓVIS BEVILÁQUA, um dos nossos maiores jurista, enviou carta do Recife para JOÃO DO RIO, no Rio de Janeiro, com respostas para uma entrevista que foi publicada no seu célebre Momento Literário, do jornal carioca, Gazeta de Notícias.

JOÃO DO RIO era um dos pseudônimos usados por João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, jornalista e escritor. O escritor faleceu quando contava com 39 anos, mas foi tempo suficiente para que tivesse produzido uma importante obra literária; isso se deveu, entre outros motivos, de ter se iniciado cedo no jornalismo - com apenas 16 anos. Escreveu para revistas e para o jornal Cidade do Rio, de José do Patrocínio. Depois, na Gazeta de Notícias, dou início às excelentes entrevistas; e, por meio desses veículos gráficos, distinguiu-se com crítico literário.

No trecho da entrevista concedida a João do Rio, para publicação na sua coluna Momento Literário, do jornal carioca Gazeta de Notícias, Clóvis Beviláqua discorre sobre o seu interesse pela ciência do Direito e faz referência às pessoas que lhe influenciaram, dentre eles, Sílvio Romero, Tobias Barreto, Jhering, Savigny.

Segue um o trecho da entrevista acima referida, concedida a João do Rio por Clóvis Beviláqua (In João do Rio. Momento Literário. Curitiba: Criar Edições, 2006, p. 79-80):



 ENTREVISTA COM CLÓVIS BEVILÁQUA
          (fragmento da entrevista)
             [JOÃO DO RIO]


Depois de ter concluído o meu curso de Direito foi que, por assim dizer, comecei a interessar-me por essa bela ciência, ao lado da qual passara cinco anos sem lhe perceber os encantos. Devo a Tobias esse inestimável serviço de me ter aberto a inteligência para ver o Direito. Durante o curso acadêmico, estudei apenas para cumprir as minhas obrigações e transitar pelas solenidades escolares sem apoio estranho, mas não podia dedicar afeição profunda a uma ciência na qual não descobria o influxo das ideias que me davam a explicação do mundo.

Incitado pelo ensino de Tobias e guiado por Jhering, vi o direito à luz da filosofia, da sociologia e da história. Savigny, Bluntschli, Roth, Glasson, Cimbali, d’Aguano, Cogliolo e Post, para citar apenas os mais característicos, deram-me a educação jurídica.

No Direito Penal, as minhas simpatias declaram, desde os primeiros momentos, pela terza scuola de Tarde, Alimenta e Liszt.

Mas, ainda que a história e a legislação comparada me dessem a contemplação do fenômeno jurídico no seu máximo brilho e em sua plenitude, é bem de ver que eu não me podia segregar do Direito Pátrio, cuja expressão me davam, principalmente, Coelho da Rocha, o mais completo discípulo de Melo Freire e Teixeira de Freitas, o maior dos nossos jurisconsultos.

Talvez pareça longa esta resposta. Mas não a podia dar mais concisa. A formação de um espírito se faz lentamente, por assimilações e adaptações sucessivas.

A história do espírito de cada um de nós reproduz, em miniatura, a história do pensamento de uma época. Mas eu me resumo, afinal. Os autores que mais contribuíram para a formação do meu espírito foram:

Em Literatura – Alencar, Taine, Sílvio Romero e Zola.
Em Direito – Tobias Barreto, Jhering, Post, Savigny e Glasson.
Em Filosofia – Litré, Comte, Spencer e Haeckel.



           
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29 de jul. de 2024

CONDOMÍNIO - Infiltração de Água




                   por Pedro Luso de Carvalho 
               

       
       Todas as pessoas que residem em apartamentos, ou que já passaram por essa experiência, têm ou tiveram experiências as mais desagradáveis no que diz respeito ao relacionamento com as demais pessoas que residem no mesmo edifício. A situação das pessoas que vivem nessa forma de agrupamento é inquestionavelmente muito desagradável. Cada morador quer apenas saber de seus ‘direitos’, confundindo quase sempre direito com interesse.
       
        Um dos problemas que afligem os moradores em edifício condominial é, sem dúvida, o desembolso de quantias que ultrapassam as parcelas fixas de condomínio, como é o caso da chamada extra de valores para a cobertura de despesas extraordinárias, por este ou aquele motivo. Tal medida só pode ser tomada pela maioria dos condôminos reunidos em assembleia, geral ordinária ou extraordinária, depois de o síndico ter providenciado a convocação de todos os condôminos para esse fim, comprovadamente.

        Um dos casos frequentes no que relaciona a chamadas extras diz respeito à infiltração de água, quase sempre no último andar do edifício, quer por vedação mal feita na laje de concreto ou no telhado, nos prédios novos, quer pelo desgaste de material em razão da ação do tempo, nos prédios antigos. Em qualquer uma das hipóteses (prédio novo ou antigo), quem passa por dificuldades é sempre o morador do último andar (às vezes os prejuízos, em razão das fissuras existentes, se estende ao penúltimo andar).

        O certo é que, nesses casos, todos os moradores fazem vistas grossas aos problemas existentes no último andar, onde fissuras na laje ou estragos no telhado, dependendo do caso, permitem que haja infiltração de água nos dias de chuva, ocasionando as mais diversas formas de danificação tanto no apartamento do morador do último andar como nos móveis, eletrodomésticos etc. que o revestem.

        Normalmente, quando isso ocorre, o síndico é o primeiro a saber, o que não quer dizer que venha a, de imediato, resolver o problema já que as medidas que vier a tomar, visando o conserto dessa parte do prédio, poderão implicar em somas elevadas para o condomínio; então o seu primeiro passo é convocação dos condôminos para assembleia geral extraordinária, colocando esse problema na ordem do dia, sempre atento para que todos sejam convocados para assim evitar anulação da assembleia caso seja ajuizada ação nesse sentido.

        Na assembleia, certamente será decidido pelos presentes, com base no Código Civil e na Convenção do Condomínio, que o referido dano deverá ser reparado com a contribuição de todos os condôminos, por constituir-se tal fato em dever do condomínio, uma vez que a fissura existente encontra-se na área comum do edifício, desta forma obrigando a todos os proprietários das respectivas economias.

        Se assim for a decisão da assembleia, estará amparada não apenas na legislação vigente como no entendimento mais recente da jurisprudência, como ocorreu no julgamento da ação declaratória e inexigibilidade de indébito promovida por um condômino que não se conformou com a decisão tomada em pela assembleia condominial, que decidiu que o reparo da fissura era de responsabilidade do condomínio, que foi julgada improcedente, em primeiro grau, cujo recurso interposto pela autora foi julgado pela Primeira Turma Recursal Cível, do Tribunal de Justiça do RS, em 09/03/2006, que, por sua vez negou-lhe provimento, como se vê pela sua ementa, in verbis:

        "Ação declaratória de inexigibilidade de débito. condomínio edilício. fissuras no último pavimento. deliberação em assembleia geral extraordinária, por maioria, de arrecadação da quantia necessária às reformas mediante chamada extra. conservação de parte comum do condomínio, que deve ser custeada por todos os condôminos, consoante convenção. quórum qualificado que não se aplica à hipótese. Recurso improvido." 




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9 de mai. de 2024

[Carta] RUI BARBOSA / Pinheiro Machado



 por Pedro Luso de Carvalho


O talento da oratória e a disposição para a luta sem tréguas em prol da justiça social constituíam-se em alguns dos traços da forte personalidade de Rui Barbosa, qualidades essas que não poderia levá-lo para outro caminho que não o da política, na qual ingressa pelo Partido Liberal, que consagra seu nome como deputado provincial, na Bahia, sua terra natal, no ano de 1878.

Em dezembro de 1881, com a mulher e as três filhas, o deputado geral Rui Barbosa, reeleito, deixa a Bahia com destino ao Rio de Janeiro, em busca de melhores oportunidades para poder melhor explorar sua inteligência e talento, sua cultura e sua inclinação para as lutas sociais.

Como o fim a que nos propomos é apresentar a carta de Rui para Pinheiro Machado, damos um salto no tempo para a data em que se realizou a campanha política e a eleição para a presidência da República, em 1910, tendo por contendores Rui Barbosa e Hermes da Fonseca, à vista do término do mandato do presidente de Afonso Pena.

Nessa época era Pinheiro Machado o homem mais forte da política brasileira; por cerca de quinze anos esse político gaúcho (vice-presidente do Senado) foi o nome mais importante da política brasileira. E foi justamente ele que arquitetou a vitória fraudulenta da eleição de Hermes da Fonseca, com manipulação dos resultados, dando como vencedor o seu candidato em detrimento de Rui, que, como mais tarde demonstrou à Nação, foi quem legitimamente foi eleito presidente da República, sem, no entanto, ter assumido ao cargo.

Anos mais tarde, depois do desastre que foi o governo de Hermes da Fonseca, o nome de Rui Barbosa foi lançado novamente para concorrer à presidência da República, desta vez sem o seu consentimento, fato que o revoltou e o fez sobre ele manifestar-se por carta endereçada ao todo-poderoso Pinheiro Machado. 

 Segue a “Carta de Rui Barbosa a Pinheiro Machado” (in Roteiro Literário de Portugal e do Brasil, 2ª ed., Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Hollanda, Rio de Janeiro, 1966, vol. II, p. 206-207, in verbis:


                                          [ESPAÇO DA CARTA]

                           
                                CARTA A PINHEIRO MACHADO
                                                   (Rui Barbosa)


Exmo. amigo Sr. Senador Pinheiro Machado.

No conflito de interesse e personalidades, que, em torno da eleição presidencial, tão cedo começa, e de um modo tão desusado, vejo envolvido o meu nome, como um dos pretendentes. Há nisto um equívoco, a que me empenho em pôr termo, peremptoriamente.

Não sou candidato à presidência da República, nem consinto que mo façam. Se amigos meus há, que tenham o pensamento de semelhante iniciativa, em nome da amizade e seus direitos, eu lha desaprovo e lha proíbo. Não quero complicá-los em dificuldades inúteis, nem concorrer para maior abatimento de nossa terra com a agravação com o espetáculo desta contenda estéril, a que a nação assiste estranha e indiferente, pelo posto da nossa magistratura suprema.

Considero o país na iminência de dias bem sombrios. Alguma coisa extremamente grave de nós se aproxima, que a cegueira geral não enxerga. Reputo insustentável a situação de anarquia, financeira, política e moral, em que nos debatemos. Daí o que vai sair, não sei; mas não há de ser o que os descuidados supõem.

Em circunstâncias tais, só inconscientes ou predestinados poderão nutrir ambições. Eu nunca as tive: muito menos as teria agora.

Candidato à presidência da República, só me animaria a sê-lo, se um movimento da opinião pública mo impusesse. Tal honra, porém, nunca imaginei merecer. A outra, a da candidatura oficial, repugna às minhas convicções e aos meus compromissos. Com os do meu longo passado de luta pela verdade constitucional, com o terrível sentimento da responsabilidade, que, no meu espírito, se associa a todas as missões de ordem superior, na vida pública, e com a intuição do nosso futuro iminente, um homem do meu temperamento e da minha educação política só a uma coisa pode pretender, neste momento e nestas condições: à liberdade, a que vou tornar, de servir ao nosso país como costumava, com toda a minha consciência, independentemente, segundo as exigências de cada oportunidade.

Escrevo-lhe estas linhas refletida e serenamente, com a satisfação de quem se desobriga de um dever dos mais gratos, e com o mais decidido empenho de que nelas se respeite a minha resolução definitiva, à qual buscarei dar publicidade, para que o pleito entre os elementos interessados siga doravante sem estorvo na hipótese importuna de meu nome.

Creio que este incidente, meu caro amigo, acabará de lhe mostrar que, na vida pública, não palpita senão pela nossa pátria o coração do seu sincero e obrigado amigo.

                                                                                               RUI BARBOSA

                                                  (Cartas Políticas e Literárias, Bahia, 1919, págs. 133-135.)
                                                                                                                                      

   
                                                                        

REFERÊNCIAS:
AMARAL, Márcio Tavares. Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Editora Três, 1974.
LINS, Álvaro e BUARQUE DE HOLLANDA, Aurélio; Roteiro Literário de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966, vol. II, p. 206-207


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23 de abr. de 2024

UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA



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   -  por Pedro Luso de Carvalho


O Instituto da União Estável é tratado no Título III, do Livro IV [Do Direito de Família] do Código Civil, pelos artigos 1.723 a 1.727, que dispõem, entre outras coisas, sobre o reconhecimento dessa entidade familiar, bem como da união estável entre o homem e a mulher. O art. 1.723 estatui que se configura a união estável convivência pública dos companheiros, de forma contínua e duradoura, com o propósito de virem a constituir família.


Portanto, o legislador deixou claro que são quatro os requisitos essenciais para que se configure a união estável, na forma estatuída pelo art. 1.723, do Código Civil, a saber: a) que a união seja entre homem e mulher; b) que seja pública a convivência dos companheiros; c) que a convivência seja contínua e duradoura; d) que a união seja entre homem e mulher. O certo é que os tribunais já vêm enfrentando o questionamento no que diz respeito aos requisitos contidos nesse artigo. Tais requisitos são ou não imprescindíveis para que se reconheça a união estável, na forma aí estatuída?


A Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul respondeu a essa pergunta ao julgar a Apelação Cível nº 70012836755, em 21 de dezembro de 2005, na qual foi Relatora a Desa. Maria Berenice Dias, que entendeu serem dispensáveis os seguintes requisitos, para a comprovação da união estável, como se vê pela ementa que transcreve abaixo:


“APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre duas mulheres de forma pública e ininterrupta pelo período de 16 anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetua através dos séculos, não mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos direitos humanos por ser forma de privação do direito à vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Negado provimento ao apelo”.


No corpo do referido acórdão, a Relatora transcreveu duas ementas de acórdãos análogos, cujos julgamentos constituem-se em precedentes de vanguarda, no seu entender, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, como se vê abaixo:


“RELAÇÃO HOMOERÓTICA. UNIÃO ESTÁVEL. APLICAÇÃO DOS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO. VISÃO ABRANGENTE DAS ENTIDADES FAMILIARES. REGRAS DE INCLUSÃO. PARTILHA DE BENS. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 1.723, 1.725 E 1.658 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas (TJRS, Apelação Cível nº 70005488812, Sétima Câmara Cível, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 25/06/2003)”.


“UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA. Incontrovertida a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos às uniões homoafetivas impõe que a Justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe seja feita analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada. Embargos infringentes acolhidos por maioria (TJRS, Embargos Infringentes nº 70003967676, 4º Grupo Cível, Relator: Desª Maria Berenice Dias, julgado em 9 de maio de 2003)”.


Esse, no entanto, não era o entendimento de Miguel Reale, jurista e professor da Universidade de S. Paulo, que em aula inaugural da Faculdade de Direito de Guarulhos, SP, disse que a pretendida união estável entre homossexuais é matéria que só pode ser discutida depois de alterada a Constituição do país. Lembrou que a Constituição de 1988 criou uma novidade, estabelecendo a união estável entre o homem e a mulher “que legisladores apressadamente confundiram com o concubinato, união irregular, à margem do matrimônio”. Reafirmou Reale nessa ocasião, que, “se querem estender esse direito aos homossexuais, que mudem primeiro a Constituição, como 3/5 dos votos do Congresso Nacional. Depois, o Código Civil poderá cuidar da matéria”.


Como referi, dos quatro requisitos essenciais exigidos pelo art. 1.723 do Código Civil, para o reconhecimento da união estável como entidade familiar, dois deles não foram levados em conta nos julgamentos supra, quais sejam, a) união estável entre o homem e a mulher; b) com o objetivo de constituição de família. Por outro lado, o jurista Miguel Reale deixou claro, como se viu, que esse tipo de união estável deveria estar no Código Civil, depois da necessária mudança da Constituição de 1988.


Daí poder-se dizer que as decisões que acolhem o pedido de reconhecimento da união estável homossexual, contrariando o que dispõe a respeito o Código Civil, ainda terá um longo caminho a ser trilhado até que a jurisprudência veja sedimentada essa posição favorável, caso o Congresso Nacional não venha a decidir-se pela alteração da Carta Magna para permitir o que foi vetado em 1988.







12 de abr. de 2024

CARLOS MAXIMILIANO & A Hermenêutica



  
– Pedro Luso de Carvalho

CARLOS MAXIMILIANO, jurista consagrado, autor Hermenêutica e Aplicação do Direito, uma das obras mais importantes do Direito brasileiro, na 9ª edição em 1975, época em fiz a leitura desse livro, escreveu o seu primeiro prefácio em novembro de 1924, na cidade de Santa Maria, RS, e o segundo prefácio em dezembro de 1940, na cidade do Rio de janeiro.
Carlos Maximiliano Pereira dos Santos nasceu no dia 24 de abril de 1873, em São Jerônimo, Rio Grande do Sul, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, no dia 2 de janeiro de 1960. Em Porto Alegre, fez o curso de Humanidades. Em Belo Horizonte, formou-se em Direito no ano de 1898. No ano seguinte passou a exercer a advocacia em Cachoeira, RS; daí mudou-se para Santa Maria, RS.
Pretendo escrever, em breve, um texto sobre as atividades do jurista, não apenas como escritor do Direito, mas também sobre a sua carreira política, bem como sobre os importantes cargos que exerceu. Hoje ficarei limitado à hermenêutica, transcrevendo interessante trecho do livro Hermenêutica e Aplicação do Direito, com o seguinte título: Apaixonar-se não é Argumentar:
É comum no foro, na imprensa e nas câmaras substituírem as razões, os fatos e os algarismos pelos adjetivos retumbantes em louvor de uma causa, ou em vitupério da oposta. Limitam-se alguns a elevar às nuvens os autores ou as justificativas que invocam, e a deprimir os do adversário; outros chamam irretorquíveis, decisivas, esmagadoras às próprias alegações, e absurdas, sofísticas, insustentáveis, às do contraditor. Exaltar, enaltecer com entusiasmo, ou maldizer, detratar com veemência não é argumentar; será uma ilusão de apaixonado, ou indício de inópia de verdadeiras razões.
A ironia leva a palma ao vitupério. O que impressiona bem (saibam os novos, mais ardorosos e menos experientes) é a abundância e solidez dos argumentos aliados à perfeita cortesia, linguagem ponderada e modéstia habitual.
Para terminar, lembro o que Rui Barbosa disse sobre Comentários à Constituição Federal, obra de Carlos Maximiliano: “É o melhor livro escrito no país sobre Direito Constitucional”.


REFERÊNCIA
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, P.277.

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